A Lei Complementar 157, publicada em 29 de dezembro de 2016 com caráter de lei complementar nacional, alterou em vários pontos o texto da Lei Complementar 116, de 31 de julho de 2003, prescrevendo novas normas gerais sobre a instituição e a cobrança do Imposto sobre Serviços (ISS). Entre essas normas estão aquelas que, com a derrubada do veto presidencial pelo Congresso Nacional no último dia 30 de maio, passaram a fazer parte dos artigos 3º e 6º da LC 116/2003 e que alteraram a definição do local de incidência do ISS sobre os serviços relacionados a planos de saúde (itens 4.22, 4.23 e 5.09), à administração de fundos quaisquer e de cartão de crédito ou débito (item 15.01) e a contratos de arrendamento mercantil (leasing) (itens 10.04 e 15.09).
Antes da derrubada desse veto presidencial, as normas gerais em matéria de ISS prescreviam que as prestações desses tipos de serviços deveriam ser tributadas no município onde estava localizado o estabelecimento prestador da pessoa jurídica que desenvolvia essas atividades, conforme prescrição do caput do artigo 3º da LC 116/2003. Considerava-se, com isso, que esses serviços eram prestados nos locais que configurassem uma unidade econômica ou profissional onde essas pessoas jurídicas reuniam os elementos necessários para executar essas atividades com habitualidade (conforme definição de estabelecimento prestador prescrita pelo artigo 4º da mesma lei). Entretanto, a partir da publicação, em 1º de junho de 2017, dos enunciados dos incisos XXIII, XXIV e XXV que foram incluídos naquele artigo 3º, o critério utilizado pela legislação nacional para dirimir conflitos de competência em relação a esses serviços foi modificado: passou a ser considerado como local de prestação e de incidência do ISS o município onde estiver domiciliado o tomador desses serviços.
É importante deixar claro que o propósito deste trabalho não é questionar a validade dessas novas normas, e sim analisar como essas alterações devem ser aplicadas pelos municípios brasileiros e a partir de quando elas podem surtir efeito sobre a cobrança do ISS. Partiremos do pressuposto de validade dessa norma, haja vista que ela foi elaborada de acordo com o procedimento legal previsto para tanto e está inserida no ordenamento jurídico brasileiro atualmente vigente [1].
Essas alterações implicaram, na verdade, na atribuição, por meio de lei complementar, de novas competências tributárias aos municípios, especialmente aqueles de pequeno e médio porte que não possuem o estabelecimento prestador daqueles serviços instalados em seus territórios e que, por isso, não tinham competência para tributar essas prestações, mas são o local de domicílio de muitos tomadores desses serviços, o que agora valida a sua tributação. Entretanto, para que possam começar a exercer essa nova competência, esses municípios não podem se valer apenas dos dispositivos dos novos incisos do artigo 3º da LC 116/2003; é necessário que, antes de tudo, atualizem suas leis municipais que tratam da cobrança do ISS para adequá-las a essas novas regras.
As leis municipais que instituem a cobrança do ISS geralmente repetem integralmente os enunciados do caput e dos incisos que compõem o artigo 3º da LC 116/2003. Sendo assim, até que não forem atualizadas, essas leis ainda estarão prevendo que os serviços relacionados às atividades previstas nos itens 4.22, 4.23, 5.09, 10.04, 15.01 e 15.09 considerados prestados e podem ser tributados pelo município onde está o estabelecimento prestador desses serviços. Então, a partir do momento em que as regras inseridas nesses novos incisos desse mesmo artigo 3º passarem a ter vigência, aquelas regras que estavam previstas nas leis municipais perderão seu fundamento de validade, pois estarão em desacordo com as regras prescritas pela LC 116/2003 para definição do critério espacial da regra-matriz de incidência do ISS.
Portanto, a primeira medida a ser tomada pelos municípios que quiserem cobrar o ISS sobre essas atividades em razão de serem o domicílio dos tomadores desses serviços é atualizar a lei municipal de acordo com as alterações feitas pela LC 157/2016 no artigo 3º da LC 116/2003. E essa atualização pode envolver também a previsão de quais deveres instrumentais deverão ser cumpridos pelos prestadores desses serviços, para que a administração municipal possa ter conhecimento da ocorrência desses fatos jurídicos em seu território. Seria o caso, por exemplo, da exigência do registro mensal de uma declaração detalhada de todos os serviços que forem prestados para tomadores que estão domiciliados no território desses municípios, tendo como base as informações constantes nas notas fiscais que foram emitidas nos municípios onde esses prestadores estão estabelecidos.
Porém, outro ponto que precisará ser analisado pelos municípios na atualização de suas leis é a possibilidade de prescrição de regras próprias para garantir a eficácia das normas previstas nos §§3º e 4º que foram inseridos no artigo 6º da LC 116/2003, considerando as regras sobre domicílio tributário prescritas pelo artigo 127 do Código Tributário Nacional. Tais parágrafos indicam, respectivamente, a identificação do domicílio tributário do tomador dos serviços previstos nos itens 10.04 e 15.09 como elemento para definir o local de incidência do ISS, assim como a necessidade de as prestadoras dos serviços previstos no item 15.01 registrarem os terminais eletrônicos relacionados a esses serviços no município onde estão os seus tomadores. Não se pode esquecer, ainda, a prescrição de que o domicílio os tomadores dos serviços prestados por planos de saúde (itens 4.22, 4.23 e 05.09) passará a indicar o município onde a prestadora do serviço deve recolher o ISS em relação a esses serviços (inciso XXIII do artigo 3º daquela lei). Com base nessas novas normas, quantos novos deveres instrumentais não poderão ser criados pelos municípios para exigir informações dos prestadores e dos tomadores desses serviços com o intuito de facilitar a fiscalização e possibilitar que efetivamente aconteça o aumento na arrecadação de ISS pelos municípios brasileiros de pequeno e médio porte, que tanto foi utilizado como justificativa para a defesa dessa drástica alteração no local de incidência do ISS?
Essa complexidade que certamente será gerada por essa alteração no critério espacial da regra-matriz de incidência do ISS justifica a defesa de que é imprescindível a observação dos princípios constitucionais da anterioridade e da anterioridade nonagesimal tributária, previstos, respectivamente, nas alíneas “b” e “c” do inciso II do artigo 150 da Constituição Federal na aplicação dessas novas regras. De acordo com esses princípios, que expressam limites objetivos ao exercício da competência tributária pelos entes federativos, a lei que criar novo tributo ou que aumentar o valor de tributo já existente somente pode ser aplicada a partir do primeiro dia do exercício financeiro seguinte àquele em que foi publicada e após o transcurso de 90 dias da data dessa publicação.
É possível que se questione se haveria, nesse caso, criação de novo tributo que justificasse a observância desses princípios, tendo em vista que não se trata da inclusão de nova atividade no critério material da regra-matriz de incidência do ISS, mas de “mera” alteração do local onde se considera prestado o serviço e devido o respectivo ISS. Alteração essa que também implicou na mudança da hipótese de incidência da regra-matriz do ISS, pois estipulou como critério espacial dessa norma jurídica o território municipal onde está o tomador desses serviços, desconsiderando o território municipal onde está estabelecido o seu prestador, que até então era o local escolhido pela lei complementar nacional para preencher esse critério. Isso nos permite afirmar que, no momento em que um município que antes não era competente para cobrar o ISS sobre essas atividades atualizar a sua lei para poder tributar essas prestações de serviço pelo fato de os seus tomadores estarem localizados em seu território, esse município estará sim criando uma nova hipótese para a incidência do ISS de sua competência, que não existia até então, já que não havia tributação dessas atividades nesses locais. Entendimento esse que se confirma se analisarmos essa alteração pela ótica do prestador de serviço, que, até o momento anterior à publicação integral da LC 157/2016, poderia ser tributado, em razão dos serviços que prestava, apenas por alguns municípios em cujos territórios estavam sediados seus estabelecimentos e que, a partir de então, verão nascer contra si a obrigação de recolher ISS a todos os municípios onde estão localizados os seus tomadores, pois esses entes passaram a ser competentes para tributar esses fatos jurídicos executados por eles.
Além disso, é possível falar até mesmo no aumento do valor do ISS ocasionado por essa alteração da definição do local de incidência do ISS que tributa essas atividades. Para tal reflexão, considere-se, por exemplo, uma empresa prestadora de um dos serviços atingidos por essa mudança que está estabelecida em um município cuja lei prevê a cobrança de uma alíquota de 2% sobre o preço desse serviço a título de ISS. Considere-se, ainda, que essa mesma empresa passará a ser obrigada a recolher ISS para inúmeros municípios onde estão domiciliados os seus tomadores, sofrendo a aplicação de leis municipais que preveem a aplicação de uma alíquota de 5% no cálculo desse imposto. Para essa prestadora, haverá, nesse caso, um aumento considerável e repentino do valor do ISS que passará a ser obrigada a recolher sobre o exercício da mesma atividade econômica que vinha exercendo com habitualidade e sem realizar qualquer alteração no seu estabelecimento ou na realização desses serviços. Se essa alteração repentina na tributação for permitida, haverá grave violação à segurança jurídica dessa prestadora de serviço.
Conforme as lições do professor Paulo de Barros Carvalho, o princípio da segurança jurídica é
(…) dirigido à implantação de um valor específico, qual seja o de coordenar o fluxo das interações inter-humanas, no sentido de propagar no seio da comunidade social o sentimento de previsibilidade quanto aos efeitos jurídicos da regulação da conduta. Tal sentimento tranquiliza os cidadãos, abrindo espaço para o planejamento de ações futuras, cuja disciplina jurídica conhecem, confiantes que estão no modo pelo qual a aplicação das normas do direito se realiza. Concomitantemente, a certeza do tratamento normativo dos fatos já consumados, dos direitos adquiridos e da força da coisa julgada, lhes dá a garantia do passado. Essa bidirecionalidade passado/futuro é fundamental para que se estabeleça o clima de segurança das relações jurídicas (…).
Desnecessário encarecer que a segurança das relações jurídicas é indissociável do valor justiça, e sua realização concreta se traduz numa conquista paulatinamente perseguida pelos povos cultos[2].
Nesse caso, o respeito à segurança jurídica dos prestadores desses serviços cuja tributação foi atingida pela LC 157/2016 será verificado com a aplicação dos princípios constitucionais da anterioridade tributária e da anterioridade nonagesimal na determinação do termo inicial de vigência da lei tributária municipal que passar a prever que a tributação dos serviços previstos nos itens 4.22, 4.23, 5.09, 10.04, 15.01 e 15.09 da lista anexa à LC 116/2003 aconteça da forma como prevista nos incisos XXIII, XXIV e XXV do artigo 3º dessa lei complementar. Pois, como bem ensina o professor Roque Antonio Carrazza,
De fato, o princípio da anterioridade veicula a ideia de que deve ser suprimida a tributação de surpresa (que afronta a segurança jurídica dos contribuintes). Ele impede que, da noite para o dia, alguém seja colhido por nova exigência fiscal. É ele, ainda, que exige que o contribuinte se depare com regras tributárias claras, estáveis e seguras. E, mais do que isso: que tenha conhecimento antecipado dos tributos que lhe serão exigidos ao longo do exercício financeiro, justamente para que possa planejar, com tranquilidade, sua vida econômica[3].
É necessário lembrar, ainda, que o princípio da segurança jurídica deve ser observado não apenas na criação de obrigações tributárias principais, mas também na imposição de deveres instrumentais aos sujeitos relacionados à ocorrência do fato jurídico tributário. Ainda que, nesse caso, não seja possível exigir que a eficácia dessas novas leis tenha início apenas a partir do primeiro dia do exercício financeiro seguinte àquele em que essa lei foi publicada e após 90 dias da data dessa publicação, já que não se trata da criação de novo tributo ou de aumento de tributo já existente, é obrigatório que esses municípios prevejam expressamente um período de tempo minimamente razoável que deve transcorrer entre a publicação da lei municipal que prescrever essas novas obrigações e a data de início de exigência do seu cumprimento. Em outras palavras, caso os municípios optem por instituir, sobre prestadores e tomadores desses serviços, qualquer obrigação com o intuito de aumentar o seu conhecimento sobre a ocorrência dessas prestações de serviço, é necessário que atentem para a segurança jurídica desses sujeitos passivos e garantam um período de tempo razoável para que eles possam conhecer essa nova legislação e organizar suas atividades para poder cumpri-las corretamente.
Não restam dúvidas, portanto, sobre a obrigatoriedade de todos os municípios brasileiros observarem as limitações objetivas dos princípios constitucionais da anterioridade e da anterioridade nonagesimal na aplicação das alterações que fizerem em suas leis ordinárias municipais para aplicar, na cobrança do ISS de sua competência, essas novas normas gerais introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro a partir da derrubada do veto presidencial à LC 157/2016. Trata-se de exigência fundamental para a garantia do mínimo de segurança jurídica a todos os prestadores e tomadores de serviços que serão atingidos por essas alterações.
[1] Utilizamos, assim, as lições do professor Paulo de Barros Carvalho: “E ser norma válida quer significar que mantém relação de pertinencialidade com o sistema ‘S’, ou que nele foi posta por órgão legitimado a produzi-la, mediante procedimento estabelecido para esse fim. A validade não é, portanto, atributo que qualifica a norma jurídica, tendo status de relação: é o vínculo que se estabelece entre a proposição normativa e o sistema do direito posto, de tal sorte que ao dizermos que u’a norma ‘N’ é válida, estaremos expressando que ela pertence ao sistema ‘S’”. (CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: linguagem e método. 5 ed. rev. e ampl. São Paulo: Noeses, 2013, p. 450-451).
[2] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 26 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 162-163.
[3] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 30 ed., rev., ampl. e atual. até a EC 84/2014. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 223.
Autor: Francielli Honorato Alves é advogada e coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Mestre em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em Direito Tributário pelo IBET, licenciada em Letras pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e graduanda em Ciências Contábeis pela Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuarias e Financeiras (Fipecafi).
Fonte: Conjur.
(…) dirigido à implantação de um valor específico, qual seja o de coordenar o fluxo das interações inter-humanas, no sentido de propagar no seio da comunidade social o sentimento de previsibilidade quanto aos efeitos jurídicos da regulação da conduta. Tal sentimento tranquiliza os cidadãos, abrindo espaço para o planejamento de ações futuras, cuja disciplina jurídica conhecem, confiantes que estão no modo pelo qual a aplicação das normas do direito se realiza. Concomitantemente, a certeza do tratamento normativo dos fatos já consumados, dos direitos adquiridos e da força da coisa julgada, lhes dá a garantia do passado. Essa bidirecionalidade passado/futuro é fundamental para que se estabeleça o clima de segurança das relações jurídicas (…).
[1] Utilizamos, assim, as lições do professor Paulo de Barros Carvalho: “E ser norma válida quer significar que mantém relação de pertinencialidade com o sistema ‘S’, ou que nele foi posta por órgão legitimado a produzi-la, mediante procedimento estabelecido para esse fim. A validade não é, portanto, atributo que qualifica a norma jurídica, tendo status de relação: é o vínculo que se estabelece entre a proposição normativa e o sistema do direito posto, de tal sorte que ao dizermos que u’a norma ‘N’ é válida, estaremos expressando que ela pertence ao sistema ‘S’”. (CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: linguagem e método. 5 ed. rev. e ampl. São Paulo: Noeses, 2013, p. 450-451).
[2] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 26 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 162-163.
[3] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 30 ed., rev., ampl. e atual. até a EC 84/2014. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 223.
[2] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 26 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 162-163.
[3] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 30 ed., rev., ampl. e atual. até a EC 84/2014. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 223.
Autor: Francielli Honorato Alves é advogada e coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Mestre em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em Direito Tributário pelo IBET, licenciada em Letras pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e graduanda em Ciências Contábeis pela Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuarias e Financeiras (Fipecafi).
Fonte: Conjur.
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